Os mesmos versos que introduzem à história de amor de "Eduardo e Mônica", questionando haver razão "nas coisas feitas pelo coração", poderiam anunciar o entrelace improvável de um casal que atualmente mora em uma parada de ônibus na DF-140. Mas a reação inicial à união causa algum espanto: Maria [nome fictício], de 45 anos, largou os seis filhos para viver com o ex-presidiário João [também fictício], de 50, que diz ter passado 26 anos na cadeia por ter matado 15 pessoas.
Os dois decidiram se mudar para o local, próximo ao Complexo Penitenciário da Papuda, há pouco mais de um mês. O homem foi posto em liberdade no final do ano passado e escolheu morar na rua para "não incomodar" familiares e amigos. Eles improvisaram uma barraca e sobrevivem com a ajuda de doações de quem passa pela região - inclusive de agentes da cadeia. A Secretaria de Segurança Pública informou ao G1 que João cumpriu pena por oito roubos qualificados.
Maria, que conheceu o companheiro há cinco anos, em uma confraternização ocorrida durante saidão, diz ter certeza da decisão tomada. Na época, a mulher já estava separada e trabalhava como faxineira em um bar. Os filhos, que hoje têm entre 16 e 22 anos, moravam com ela.
"Esse homem foi melhor do que ganhar na MegaSena. Ele me dá tudo o que eu preciso, é só o ouro. Tem muita paixão, muito amor entre a gente. Eu o conheci e me apaixonei assim", disse. "Eu não gosto que critiquem minha decisão. Meus filhos já não eram mais pequenos e hoje moram com a irmã mais velha. É um problema só meu."
Natural de uma cidade do interior da Paraíba, João conta se dar bem com os enteados. Ele diz ser filho de um policial civil aposentado e afirma que praticou o primeiro crime quando ainda era menor de idade, depois de ouvir que a filha do vizinho havia sido estuprada. O ex-presidiário garante que matou 15 homens - e em todas as ocasiões usando um facão - com a intenção de fazer justiça e que nunca se aproveitou do crime para levar vantagem pessoal.
E"Quando a pessoa não conhece as coisas de Deus fica cega. Eu achava que estava fazendo justiça, mas estava fazendo mal a mim mesmo. Eu nunca usei drogas. Vez ou outra tomo cachaça, mas é só. Eu acho que as pessoas só não mudam quando não querem. Eu aprendi e quero recomeçar", afirma.
O ex-presidiário diz que levou currículo a empresas de ônibus e que tem feito bicos para se manter - catando material reciclado ou vendendo "besteiras" dentro do ônibus. Ele garante que aprendeu com tudo o que passou e que não pretende voltar à prisão.
João conta que não aceitou a ajuda dos pais e dos familiares também como parte desta aprendizagem. Segundo o ex-detento, a família pensa que ele está viajando e nem imagina que ele dorme na rua. Até com os filhos o contato ficou restrito. "Se nada der certo, vou com minha mulher para a Paraíba, até a pé. Mas dos outros não dependo", concluiu.
Dados da Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda apontam que o DF tem mais de 2,5 mil moradores de rua. A pasta conta com 28 equipes que visitam essas pessoas e oferecem vagas em casas de abrigo. Segundo o governo, no entanto, nem todas aceitam.
João e Maria, por exemplo, receberam assistentes sociais em três ocasiões, mas não quiseram deixar a parada de ônibus da DF-140. Nos abrigos, eles teriam acesso a acompanhamento psicológico e social e poderiam retirar documentos pessoais de graça, além de ganhar orientações para voltar ao mercado de trabalho. O tempo de permanência nestas casas é de no máximo 90 dias.
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